Depois de fechar as centrais elétricas a carvão, Portugal aumentou as compras de energia elétrica a Espanha. E essa mudança acabou por levantar questões estratégicas sobre a dependência nacional relativamente à energia que vem do país vizinho, alerta Ana Estanqueiro, investigadora do Laboratório Nacional de Energia e Geologia. A investigadora acredita que as renováveis vão acabar por mudar o paradigma e os hábitos de consumo de energia.
Ana Estanqueiro, investigadora do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG) e referência no desenvolvimento da energia eólica e na sua integração na rede elétrica, considera que já não há margem para acomodar em Portugal investimentos em centrais nucleares. Em entrevista ao podcast Futuro do Futuro, a investigadora lembra que a estabilidade da rede elétrica, que obriga a evitar tanto escassez como também os excessos de produção, acaba por inviabilizar, do ponto de vista técnico, os investimentos em centrais nucleares.
“Em Portugal, quando tomámos no final dos anos 80 e no princípio dos anos 90 a opção claramente renovável, retirámos do nosso horizonte a hipótese de ter centrais nucleares”, informa a investigadora do LNEG.
Ana Estanqueiro recorda que o consumo de eletricidade em Portugal ronda os 10 gigawatts (GW), sendo que uma central nuclear, além de uma elevada potência, caracteriza-se pela produção em contínuo, que gera desafios técnicos acrescidos quando se trata de escoar a energia para a rede, sempre que se supera o máximo atingido pelo consumo.
Esse excesso, que é especialmente problemático para a gestão de uma rede elétrica, poderia deixar de ser assim tão raro tendo em conta que Portugal já tem barragens, eólicas ou fotovoltaicas e outros meios de produção de eletricidade.
“Para que funcione sem problemas, em cada instante no tempo, a produção de eletricidade tem que igualar o consumo total de eletricidade num determinado país ou determinada zona”, explica a cientista.
No entender de Ana Estanqueiro, centrais nucleares e energias renováveis “coabitam muito mal” na rede elétrica, pois juntam os desafios técnicos associados ao excesso de uma fonte de energia constante como o nuclear aos desafios não menos trabalhosos das renováveis, que se distinguem pelo facto de não ser possível garantir sol ou vento a toda a hora para a produção de energia.
Mesmo com as limitações técnicas que poderão surgir de uma futura produção em excesso, Portugal não deixa de estar dependente das importações de energia de Espanha.
Portugal e Espanha têm climas parecidos – e isso significa que podem ser afetados em simultâneo tanto na abundância como na escassez de sol ou vento. E esse fator pode pôr em risco a segurança energética nacional, no dia em que Espanha não tiver vento ou sol em volumes suficientes para produzir e exportar a eletricidade que Portugal importa.
“Em termos legais, Espanha pode cortar o fornecimento a Portugal e dar prioridade ao seu espaço nacional. E isso é perfeitamente legal em termos comunitários”, recorda Ana Estanqueiro.
A variabilidade que caracteriza as renováveis também haverá de gerar impacto nos hábitos de consumo de vários pontos do globo. “Vamos ter que mudar este paradigma. O consumo vai ter que se tornar muito mais flexível porque a produção é muito menos flexível do que foi no passado”.
Mais uma vez, a dificuldade da rede em lidar com o excesso de energia terá implicações nas rotinas e nas carteiras dos consumidores. “Entre as 11 da manhã e as 4 da tarde a energia vai ser muito barata. E vamos deixar os eletrodomésticos programados, a máquina de lavar a louça e a de lavar a roupa, para lavar essas horas. Porquê? Porque a produção fotovoltaica está a subir e a essas horas vai haver um excesso de produção”, acrescenta a investigadora.
Perante um cenário que rapidamente passa do excesso à escassez e vice-versa, apenas as tecnologias de armazenamento de energia se podem revelar providenciais. Mas nesse campo, Ana Estanqueiro garante que ainda nada superou as centrais hídricas – ainda que aponte o hidrogénio como caminho a seguir.
A investigadora do LNEG, que também dá aulas na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, recorda que “uma das mais-valias mais relevantes da produção de hidrogénio” remete precisamente para a possibilidade de “utilizar a energia excedente de centrais eólicas e solares fotovoltaicas em horas em que o consumo não justifica essa produção e usar esse excedente para produzir hidrogénio e guardar esse hidrogénio”.
A aposta europeia no hidrogénio, apesar de ser uma aposta a longo prazo, também poderá ajudar a reduzir a dependência de combustíveis fósseis. “O hidrogénio tem a capacidade de, senão totalmente, pelo menos parcialmente, substituir o gás”, responde Ana Estanqueiro. Em contrapartida, a investigadora é cética quanto à hipótese de desenvolvimento de unidades de armazenamento de energia feitas partir do lítio.
“Devo dizer que não sou muito favorável, em termos de utilização sustentável e eficiente, dos materiais de instalação de baterias eletroquímicas de lítio, por exemplo, à escala do sistema elétrico. Porquê? Porque os materiais são escassos, e o impacto ambiental da mineração é também elevado”.

Nos habituais desafios colocados no podcast Futuro do Futuro, Ana Estanqueiro trouxe para escuta um som produzido por uma turbina eólica, e uma imagem que pretende ilustrar o potencial dos parques eólicos que operam a flutuar no mar.
O Plano de Afetação que o Governo lançou recentemente para a produção de energia eólica a partir do mar já deverá contemplar um acréscimo de 10 GW na capacidade de produção de eletricidade nacional. O que pode significar mais 50% de capacidade de produção elétrica atual.
“Os pescadores estão a ser tomados em consideração nas várias zonas”, garante Ana Estanqueiro. Como exemplo, a investigadora destaca o cuidado do Plano de Afetação, ao afastar a instalação de turbinas eólicas de uma zona de pesqueiro especialmente rica em Viana do Castelo, para evitar perdas para quem vive da pesca.
Por outro lado, a presença da eólicas flutuantes poderá dar igualmente o mote para a instalação de unidades de exploração de aquacultura. “Desde as primeiras turbinas que se instalaram em Portugal que digo que não se faz este tipo de centrais contra as pessoas no local”, conclui Ana Estanqueiro.
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